Volte dois mil anos atrás e imagine:
Você mora desde a infância em sua pequena aldeia de pescadores e a cada sol precisa cuidar do que viver e do que vestir com suor do rosto nas redes de pesca sobre o Mar da Galileia. Os dias são de fato bem previsíveis e a aldeia não é das mais prosperas, pois há miséria e doença há poucos metros de sua modesta casa. A pesca não lhe trouxe muito lucro, mas ainda consegue prover um mínimo para que sua família desconheça dessa miséria. Mas hoje você não vai ao mar, porque conhece o céu e os ventos o suficiente para prever a grande tempestade que se aproxima. Então você decidiu ficar em casa e consertar umas das redes mais velhas, um trabalho que consumiu toda a manhã e agora avançava para a tarde... foi quando as primeiras gotas da chuva começaram a marcar a areia e uma blasfêmia se formou em sua boca, ao cortar o dedo no manejo com a rede. De súbito, você ouve o rebuliço de uma multidão que se aproxima em risos e canto – a coisa mais estranha para uma aldeia que há muito não tinha o que celebrar. Contudo a sua indignação e mesmo o modo como enfaticamente iria praguejar do seu pequeno corte, cederam rapidamente diante de uma inusitada sensação de paz e jubilo.. Em sua surpresa, mesmo o corte que ainda há pouco lhe sangrava o dedo parece ter cicatrizado. A multidão se aproxima e você reconhece o nome do rabi de que todos têm comentado: o homem que dá vida aos mortos e caminha sobre as águas na tempestade. Você reconhece outros pescadores que agora o seguem, mesmo coma família e pobreza, lá estão eles leves e prazenteiros caminhando ao lado do rabi. Uma série perguntas lhe faz abandonar a lida: “E por que não você? E por que não descobrir como se reanima os mortos e se acalma o mar? E por que não reter aquela paz pelo resto dos dias? Por que não cicatrizar os cortes mais profundos em seu coração?” Sim, você poderia. E você espera pacientemente com a multidão feita de sábios, pescadores, mendigos, nobres e prostitutas (que vc reconhecia também!), todos sobre a mesma chuva, do lado de fora da pequena cabana .. a cabana recentemente erguida com muito esforço por uma senhora, que trabalhava para calar a miséria que tantas vezes lhe doía os olhos.. a cabana em que o rabi curava e ensinava.. Você espera a chance de dizer ao Mestre o excelente discípulo que você poderia ser, porque ao contrario de muitos outros pescadores ignorantes e braçais, você consegue ler as escrituras de Ezequiel e escreve razoavelmente; seu pai sempre se orgulhava do tom que sua voz adquiria nessas leituras e até mesmo de sua pequena sabedoria ao se atrever a interpretá-las.. E quantas noites ao redor da fogueira já não testemunharam a filosofia intrincada de seus discursos aos amigos que não ousavam rebater seu raciocínio precioso e que gostavam de reunião feita de um bom peixe ? – você sabe o quanto é bom ser idolatrado! Ah!! Você era o homem certo para ser o predileto do rabi! Então chegou finalmente o momento em que você ensopado, mas com discurso decorado, se apresentaria ao Galileu. Foi bem desconcertante. Você não estava preparado para a força que havia nos olhos do rabi, o tipo de força que lhe envergonhou de suas miudices, diante da qual seria um absurdo a tentativa de qualquer mentira ou a violência. Já tinha visto reis e imperadores, mas jamais sonhara que tamanha realeza fosse sustentada por um simples olhar do homem que calçava sandálias mais humildes que as suas. E ainda assim você falou:
- Mestre, ouvi suas pregações e vi suas curas, não desconheço que o é eleito pelas escrituras e venho aqui humildemente oferecer meus serviços ao apostolado.
O nazareno o encarou com seu olhar límpido e falou com tranqüilidade:
- Pois bem, temos dois leprosos agonizando aos cuidados da senhora desta cabana, poderia ajuda-la na troca de curativos e prove-los de comida e atenção?
Leprosos!! – foi o que pensou – nesta cabana? E tão próximos de minha casa? Como essa mulher conseguiu conceber tamanha loucura? Deve estar possuída...
Antes de completar os pensamentos, o rabi lhe interpelou o raciocínio:
- E o que me diz de cuidar do ensino e do sustento dessas duas órfãs cegas que a mesma senhora acolheu com tanto sacrifício?
As duas meninas? Ah!! Você sabe que são filhas das prostitutas da aldeia vizinha, duas inuteis na vida, já nasceram cegas como castigo para libertinagem das mães e assim tem o que merecem– e você pensa nisso mesmo que algo lhe machuque o coração, pois poderia até jurar que uma das meninas tem olhos como os seus..
O Mestre com a mesma calma lhe interfere novamente os pensamentos com um terceiro convite:
- E o que acha de ceder algumas horas de teu dia para o conserto do teto desta cabana que serve de lar para teus irmãos em miséria?
Ajeitar o telhado daquela cabana?Com certeza o mestre é um brincalhão, pois ele bem sabe que meu tempo é curto, que meus esforços seriam melhor empregados no estudo filosófico para e divulgação de sua palavra ou mesmo traduzindo-a para a forma escrita a fim de pudesse ser o embaixador da boa nova junto aos reis e ao grandes mestres.
O mestre sorriu tristemente como quem lhe adivinhava o íntimo e disse:
- Uma vez fiz o seguinte convite para um mancebo rico e inteligente – Se queres apefeiçoar-te, vai vende tudo o que tens, tudo entregando aos pobres, e terás um tesouro nos céus... Feito isso vem e segue-me... mas ele se afastou muito triste. O que faz aquele mancebo tão diferente de ti?....
Agora pause a historia, volte ao século XXI. Você já não é mais o pescador, você é hoje o medico cheio de titulos, jornalista premiado, juiz renomado ou advogado famoso, tua aldeia não é mais feita de pedra e barro, mas de asfalto e concreto; você não tem mais que se preocupar com o remendo das redes, com a tempestade ou o sucesso da pesca, você tem impostos para pagar, um carro para comprar, um concurso a mais para conquistar, uma residência medica para disputar; você já não luta com os segredos da escritura, você desvenda os mistérios do universo com a ciência moderna, você se extasia com a filosofia antiga ou moderna... mas ao lado da cama repousa o Evangelho de tua infância e nele as palavras – Feito isso, vem e segue-me... E agora? Você consegue divisar a atual cabana da senhora em que Cristo trabalhava? O que você pensará se o rabino lhe repetir os mesmos convites de trabalho na cabana sobre a tempestade? Prove que tua filosofia te explicou sobre o que realmente importa ao Mestre?
Sempre penso nessa historia (inspirada nos textos do Irmão X)em todas as manhã diante do espelho e me pergunto se aquele dia que se inicia será finalmente diferente do que foi há 2mil anos sobre tempestade....
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sábado, 7 de fevereiro de 2009
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Querida Cris eu te amo!!!! Você não assinou, mas nem precisa. Texto belissimo.
ResponderExcluirAqui faço um comentário do meu próprio texto. Na verdade, apenas alguns acrescimos, se me permitem. Bem, alguns podem imaginar que estou sendo contra a filosofia. Não. Sou contra a inércia.. amo a filosofia, aquela que lança luzes a nossa ignorância para então podermos enxergar a beleza do que foi criado, ou mesmo de nosso proprio destino. A filosofia deve nos libertar das amarras do individualismo e da preguiça, para que possamos arregaçar as mangas e construir um mundo melhor. Um mundo melhor nasce de pequenos a grandes atoes de amor. Seja em nossa casa, em nossa familia, com amigos ou vizinhos, seja exercitando a paciencia e a nao violencia com aquela sogra chata. Um mundo melhor nasce quando nos esforçamos para fazer nosso trabalho da melhor maneira possível.. nasce de um "bom dia" dito com um sorriso sincero... e nos deixemos contaminar por isso e vamos seguir em frente em desafios maiores... Lembro de uma frase dita por Che Guevara - " ..nossos revolucionários de vanguarda precisam idealizar seu amor pelo povo, pelas causas mais sagradas e torna-lo uno e indivisível. Eles não podem se rebaixar, com pequenas doses de afeto diário, aos lugares onde os homens comuns põem seu amor em prática".. ou ainda mais " Acho um crime se pensar constantemente em individuos, porque as necessidades do individuo passam inteiramente para segundo plano diante das necessidades do conglomerado humano..". Essa é a revolução verdadeira , aquela que nasce de um ser humano de coração reformado..daquele que age.. que se importa nao somente com os seus, mas com todo os demais.. E nós sempre teremos algo a oferecer... sempre haverá algo com o que lutar.. nem que seja um simples abraço...
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